Entrevista com Carrinho Oliveira, interno do pe. Brandt em 1946, em Arari-MA.
HM – Seu Carrinho, como é seu nome completo e em que ano o sr. nasceu? Carrinho Oliveira – José Carlos de Oliveira. Nasci em 1927, no Paiol, município de Vitória do Mearim-MA.
HM – O sr. foi interno do pe. Brandt, em Arari-MA?
Carrinho Oliveira – Fui. Fui interno do pe. Brandt, mas eu pedi para ficar no regime de semi-internato, para fazer um curso de datilografia, na casa de Jaime Fernandes, que morava da ponte pra baixo. Então, eu ficava de manhã no internato e de tarde na escola de datilografia. Mas eu pagava ele direitinho. HM – Pagava quem? CO – Pagava o padre. HM – Era pago lá? CO – Era. Era pago duzentos “reais”, naquela época. Todo mundo pagava. Tinha interno de Penalva, Cajari, Viana...
HM – Em que ano o sr. foi ser interno do padre e como era a rotina lá no pensionato?
Carrinho Oliveira – Foi em 1946. Domingo tinha banho na rampa, e o padre ficava lá em cima da rampa vigiando a gente, e ninguém pegava num cabo de um batelão daqueles que tivessem ancorado ali...; se pegasse, ele retirava do banho e colocava de joelho; segunda-feira não tinha banho, só molhava o rosto e tal. Cada um tinha uma bacia, de esmalte, um copo, um prato etc. Depois que entrava na casa do padre não podia mais sair; a gente ficava no quintal, de tarde, conversando um com o outro, em cima das toras de pau. O banheiro lá, o sifon, era aquela caixinha de pau, com um buraco pra lá, outro pra cá, e um buraco fundo no chão. Só tinha esse banheiro, pra todos usarem. HM – O padre banhava no rio com vocês? CO – Não, ele só banhava em casa. Tinha uma pessoa que botava água pra ele banhar.
HM – Quantos internos havia, mais ou menos, naquela época?
Carrinho Oliveira – Nós éramos parece que dezesseis. A casa era pequena, não cabia mais. A sala da frente era o colégio, de 1º e de 2º ano; a outra, também servia de sala de aula, e no quarto dele, ele ensinava outra turma. Ele dormia nesse quarto, com a mãe dele. HM – O sr. lembra nome de algum interno? CO - Tinha Valter Gama, Bernardino Coêlho, Manoel Serejo, que era sobrinho de Zé Serejo, tocador, lá de Vitória. Zé Carlos – Papai, Domingos Batalha, que foi prefeito, não era seu colega de colégio?. CO – Era. Ele era do terceiro ano, e eu do quinto. Zé Carlos – Rosinha Cantanhêde mandou o filho dela morar com o padre. É o Roberval, que tem uma gráfica perto do colégio Santa Teresa.
HM – O padre já publicava algum jornal?
Carrinho Oliveira – Não, publicava não. Depois que nós saímos, ele tava começando a gráfica.
HM – Seu Carrinho, como foi a sua desavença com o padre?
Carrinho Oliveira – Quando foi segunda-feira, os meninos levaram os bancos de nós sentar lá pra igreja, para estudar catecismo. Eram uns bancos de 5 metros, feitos por um tal de Chiquito, um carpinteiro lá do Arari. O quintal do padre era cheio de tora de paus, para fazer os bancos, e era Chiquito quem serrava, com aquele serrotão! Aí, eu tava lá sentado, e o Paulo Silva, de Bacabal e outro interno, de Vitória, tentavam carregar um só banco, que era muito pesado, e eu peguei a ri, quando o padre apareceu e disse pra mim: - seu moleque, seu cabra safado, ordinário, você não sabe que isso não é hora de anarquia?! Aí eu peguei um banco, com ignorância, botei nas costas e saí levando o banco, com tudo que tinha pela frente, e arrieei ele no chão, lá na igreja, e disse: - Eu não carrego mais banco nessa porra, porque eu não sou empregado de colégio nem de igreja. Aí, o pau comeu! Daí a pouco ele veio e, como a casa era assoalhada, eu ouvia toc, toc, toc, toc, e chegou e me disse: - Seu safado, por que é que você vem mandar nome aqui? A mãe dele que foi fuxicar. Aquilo era fuxiqueira que só ela mesma! Aí ele marchou de lá pra cá, e eu passei pra detrás dum banco e disse: - Padre, o senhor me respeite, o senhor repare que eu sou um dos seus alunos que tenho respeito por você, até aconselho os outros pra não fazer nada, não isso, não fazer aquilo. Porque tinha lá um Valter Gama, de Penalva, que quando ele pegava uma notinha que o pai mandava para pagar o mês, se sobrava alguma coisinha, ele ia pra casa daquele barraqueiro, do lado da igreja, meter cachaça. Bebia duas, três pingas! Aí, eu dizia: - Tu é doido, rapaz!? Aí, o padre estribuchou, e eu disse: - Se você levantar a mão aí, uma coisinha, eu lhe quebro a cara, em cima desse óculos. Aí, ele voltou, foi embora, e eu dali eu não saí pra tomar café, não almocei e não jantei, porque eu tava enfezado. Aí, já na hora de dormir, eu ele me chamou e disse: - Zé Carlos, faça favor. CO – Pronto. E o padre disse: – Olha, eu quero lhe pedir desculpa. Aquele foi uma das maiores ignorância da minha vida. E eu respondi: – Foi mesmo, e eu ainda não tinha notado isso no senhor; outra coisa: corrija a língua de sua mãe, que vive fuxicando, enchendo sua cabeça.
HM – Havia alguma outra coisa que o sr. não gostava e que o padre fazia?
Carrinho Oliveira – Tinha. Todo sábado ele dizia pra nós deixar a chave na fechadura da mala, ele vinha e esgravatava tudo; fiscalizava todas as malas, que eram feitas por Manoel Abas, e ele levantava o tabuleiro, e levantava roupa por roupa. HM – Que padre curioso, rapaz??! CO – Ele era danado. Um dia eu me queixei pra mamãe que eu tava com joelho doído, de tanto ficar de joelho, lá na igreja, na missa. Aí, eu pedi pra mamãe fazer uma trouxinha (almofadazinha), pra eu ajoelhar em cima, aí minha mãe fez, e Biinha, minha namorada e primeira mulher, fez uma carta e mandou junto com a trouxinha e, na entrega, o cara entregou foi para o padre. E, quando ele viu a carta, ele endoidou. Foi bater onde Cipriano dos Santos com essa carta. HM – E o que ele queria com Cipriano? CO – Cipriano era influente, e era para ele que a gente pedia o dinheiro para pagar o padre, e depois papai (Antoninho Oliveira) pagava Cipriano, que morava na Rua Grande, defronte da casa de Tunico Santos. E Cipriano disse: - Padre, não se preocupe com isso. Ele não é comportado? – É. Aquela menina, ele já namora há muito tempo, e ela é filha daqui de Arari, dessa rua aqui atrás da minha casa.
Uma vez o padre inventou de levar um barbeiro pra cortar o cabelo da turma. Mas era pra cortar o cabelo pelado, mesmo! Aí, quando chegou na minha vez eu disse: - Não! Eu não tenho esse costume de andar de cabeça raspada. Não roubei, não matei, pra que andar desse jeito? Mas eu sabia que tinha um barbeiro lá na rua da Franca, e noutro dia eu disse: - Padre, o sr. não dá licença de eu ir cortar meu cabelo? Ele olhou assim... – Vai, rapaz, vai.
Zé Carlos – Ele não botava vocês pra jogar bola, papai?
Carrinho Oliveira – Nós jogava. O presidente do time do padre era eu. Nós fizemos um campo lá, pra treinar e jogar contra outros colégios e contra Vitória. Um dia nós tava treinando no campo e eu dei uma rasteira no padre e ele caiu... levantou, me olhou, e eu disse: - Eu sou jogador, eu sou jogador (risos).
HM – E quanto à comida, onde era preparada?
Carrinho Oliveira – Era feita na casa do padre mesmo. De comida, a gente não passava mal. Na mesa, todo dia, saía dois pra servir a mesa: um trazia arroz, outra trazia a carne, outro trazia farinha e uma banana.
HM – O sr. ajudava nas celebrações?
Carrinho Oliveira – Ajudava. Ele me botava pra carregar esse negócio que bota a Bíblia em cima, muito pesado, pra ele ler, na missa. Eu ficava de frente pra rua e ele, de costas... Depois, ele me deu o certificado do quinto ano, pra mim, para Zé Benedito, do Cordeiro, e pra Manoelzinho, de Cipriano, e nós fomos fazer exame de admissão, em São Luís. Mas Manoelzinho não era interno, era colega do colégio. Eu passei no exame de admissão, mas papai mandou me chamar, pra eu casar com Biinha, que estava grávida e já morava no Cordeiro, mas ela não disse nada pra ninguém (que estava grávida). Depois, foi que ela fez uma carta para Engrácia, dizendo que estava grávida de mim e Beata disse para papai e para mamãe, e papai foi com Nicolau, no Cordeiro, pedir ela em casamento e levar pro Paiol. Filha de Carrinho – Vovô ia pedir ela em casamento pro senhor? CO – Era, porque ela tava grávida. E ele pediu e de lá disse pra velha Venância que ia pra Vitória telegrafar pra mim, pra eu vir casar com Biinha. E dona Venância perguntou: - E ele vem? CO – Ave Maria!!!, respondeu papai. HM – O senhor estava no Arari? CO – Não, eu morava aqui em São Luís, na casa de dona Sinhá. Aí, eu recebi o telegrama... aí eu endoidei, e disse: - Dona Sinhá, eu vou me embora. Quanto é que eu tô lhe devendo? Sinhá – Nada. CO – Não, eu tô devendo vinte “reais”, da lavagem de roupa, para sua empregada. Paguei, e fui pra rampa, embarquei na lancha e desci na Boca do Rio, após parar em Arari. Depois, peguei uma canoa pra Santa Bárbara, no Japão, onde pedi para dona Delzuíta me arrumar um animal e ele me arrumou uma burra e disse: - Carrinho, não tem é sela. Zé Carlos – Ela ainda é viva! CO – Ainda tá viva? ZC – Tá, ela mora num casarão, no centro, perto de uma escadaria, no canto da rua Graça Aranha. Carrinho Oliveira - Aí eu consegui uma sela lá no Zé Muniz, e cheguei no Paiol já de noite. Deca Vieira, pai de Cecira, tava pescando por ali, e eu disse: - Ei, rapaz, vem cá. Me bota ali, do outro lado. Eu cheguei, encostei a burra e vi mamãe, Antonio Lobo, Biinha e papai, na cabeceira da mesa; eles tinham acabado de jantar. Mamãe disse: - Ei, meu compadre!, pensando que era Anselmo. Aí, eu entrei, Biinha levantou logo e me abraçou. Zé Carlos – O nome dela era Biinha, papai? – CO – Não, era Maria do Espírito Santo Sousa Oliveira. Aí, papai me olhou e disse: - Isso é que é, rapaz!! Obedece mesmo!! Tem que obedecer. Aí, depois nós fomos casar em Vitória. Casamos no dia 21/3 e ela morreu, de parto, nesse mesmo ano de 1947, em outubro.
HM – No paiol, não tinha médico?
Carrinho Oliveira – Que médico!? Ali quem aplicava uma injeção e arrancava um dente era eu! Eu comprava homeopatia na farmácia Confiança, aqui de São Luís e levava pra medicar no Paiol.
HM – Anos depois o padre se envolveu com mulheres, em Arari. Nessa época, ele já namorava?
Carrinho Oliveira – Ele tinha uma mulher, e ela era casada, mas ninguém sabia bem disso, direito, mas o povo já falava. Eu estava bem perto do confessório, e essa mulher sempre ia lá, pra se confessar. E eu ouvi uma vez ela dizendo: - É, se você não quer ir lá em casa, não vá, mas sou eu quem sinto a sua falta, e você me deixa jeito... E eu pensei: Vixe Maria...
Carrinho Oliveira – Agora eu te pergunto: Tu és filho de Clemente? HM – Não, sou neto; filho de Darcy com Hilton Corrêa. CO – Rapaz, por onde anda Sebastião, que roubou uma filha de Clemente e foi morar no Brejinho? HM – Ele separou dela, Tunica,que mora no Arari, e a última notícia dele é que mora em Itaituba, no Pará, com outra família.
HM – Seu Carrinho, ainda com relação ao padre, quais foram as grandes virtudes que o sr. viu nele?
Carrinho Oliveira – Ele era muito inteligente, sabido, sabidão mesmo! O defeito dele era só essa estupidez com os internos, mas ele me respeitava!
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